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Defesa dos carentes: “O que decidem no mensalão torna-se norte para juízes”

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Enquanto, na última semana, os ministros do Supremo Tribunal Federal se mostraram preocupados sobre como suas decisões na Ação Penal 470, o processo do mensalão, vão gerar jurisprudência e mudar o julgamento em instâncias inferiores, o presidente da Associação Paulista de Defensores Públicos, Rafael Português, já falava disso na primeira semana do julgamento. Mais do que “o que” vai ser julgado, Português se preocupa com o “como” está sendo julgado.

Tudo o que os ministros fazem “lá”, diz ele, se torna um norte para os juízes, afetando diretamente o trabalho daqueles que atuam na área penal. O maior operador do direito nessa área, defende ele, é a Defensoria Pública, responsável por atender à população carente, garantindo acesso à Justiça e a ampla defesa.

O próprio julgamento do mensalão contou com a “participação especial” do defensor público Geral da União, Haman Tabosa Córdova, que subiu à tribuna para defender o empresário Carlos Alberto Quaglia. Córdova conseguiu provar que o empresário argentino teve sua defesa cerceada e fez com que os ministros anulassem o processo contra ele e que fosse desmembrado da ação principal que corre no Supremo. Quaglia deverá responder em primeira instância. Atuação aplaudida por Português.

Além da luta por garantir a defesa a toda a população, a Defensoria Pública tem se empenhado em desenvolver teorias jurídicas para resolver conflitos específicos para a parcela pobre da sociedade. Os tribunais têm conhecido, hoje, as discussões sobre o “direito da laje” ou a possibilidade de transmitir lotes de terras ocupadas — ou invadidas — a herdeiros, como explica Português.

A defesa dos pobres, porém, também tem rendido à Defensoria uma de suas maiores disputas: a briga pelo convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil. Toda ajuda é muito bem-vinda para o presidente da Apadep, porém, ele prefere que ela seja oferecida pela atuação pró Bono dos escritórios.

Atualmente, os repasses feitos pela Defensoria para os advogados do convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil estão entre R$ 450 milhões e R$ 550 milhões.

 

Leia a entrevista com Rafael Morais Português de Souza, presidente da Apadep:

 

ConJur — Vimos no julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão, o defensor público Geral da União, Haman Tabosa Córdova, atuar lado a lado de advogados caros, da elite da advocacia, defendendo Carlos Alberto Quaglia. É também função da Defensoria estar em casos como esse?

Rafael Português — Na atuação penal, não há possibilidade de um caso ser julgado sem ter um defensor constituído. Na prática penal, a Defensoria não faz triagem sócio-econômica, é obrigação dela. Nesse caso, o Supremo fez um ajustamento com a Defensoria Pública da União para garantir: caso faltasse algum advogado, a Defensoria Pública da União supriria isso. O Quaglia não constituiu advogado.

ConJur — Pegando como exemplo o caso do mensalão, como a Defensoria Pública lida com a defesa de um réu que já está previamente condenado pela população?

Rafael Português — Esse é o grande desafio do defensor. E a vocação de estar ali é para contar a história e ver os recursos cabíveis. Tudo faz sentido desde que a gente entenda. O papel do defensor é reconstituir o cenário sem os pré-julgamentos e conseguir se contrapor a ondas de linchamento público. A eventual vulgarização de garantias constitucionais do processo penal acaba tendo uma repercussão muito forte, muito negativa. A repercussão disso não vai ocorrer só ali, mas no cotidiano de todos, fazendo, mais uma vez, ser afastado o contraditório da defesa do carente. A Defensoria não é só para o cidadão interessado naquele caso na Justiça, mas também para a repercussão direta dos casos.

ConJur — E qual a influência do julgamento do mensalão?

Rafael Português — Vai interferir em como os juízes vão julgar a demanda da população carente nas instâncias inferiores. A questão de garantir uma defesa, um debate. Tudo que eles fazem lá se torna um norte para todos os juízes que atuam na área penal, e isso tem repercussão em toda a nossa sociedade. A grande maioria dela é usuária da Defensoria Pública, o que traz um impacto enorme para a nossa atuação.

ConJur — O defensor público deve estar vinculado à OAB?

Rafael Português — O defensor não está obrigado a estar vinculado à Ordem dos Advogados. Não é uma questão contra a Ordem, é uma instituição importante, ela tem um papel muito relevante na defesa do advogado, mas a realidade constitucional dá à Defensoria Pública um status de autonomia. É uma instituição autônoma, emancipada do Poder Executivo e do Poder Legislativo. Ou seja, ela tem autonomia em relação ao Estado de autoridade, mas seus defensores precisam ser submetidos à OAB? Um defensor público pode acabar tendo sua capacidade postulatória suspensa pela Ordem dos advogados por conta dessa vinculação. Ele já tem a corregedoria, que poderia, eventualmente, puni-lo. E, se punido pela corregedoria, ele poderia ir à Ordem dos Advogados dizer que é inocente? A Ordem tem que fiscalizar cobrando que a Defensoria Pública atue de forma republicana, dentro daquilo que está escrito na Constituição. Ter um outro órgão fazendo fiscalização correcional na Defensoria não faz sentido.

ConJur — Mas o defensor não é um advogado?

Rafael Português — O defensor público, pela Constituição, se enquadra na categoria profissional de defensor público. Ele é bacharel em Direito, como é o promotor e o juiz. Claro que ele guarda uma relação muito próxima com a advocacia, porque a função que ele exerce na Defensoria é muito próxima ao que faz um advogado particular. Só que ele exerce isso como uma atribuição pública, com outra finalidade, defendendo outros interesses. O importante nisso tudo não é se ele é ou não advogado, o importante é que ele tenha capacidade postulatória.

ConJur — E quais são os principais pontos de divergência entre a Defensoria e a OAB?

Rafael Português — É a questão da vinculação do defensor à Ordem e a questão do convênio da Defensoria com a Ordem para assistência de pessoas carantes.

ConJur — A discussão sobre o convênio é se ele deve ser feito só com a OAB ou se pode ser feito com outras instituições como faculdades e ONGs. Qual é a sua opinião sobre o assunto?

Rafael Português — Eu considero a posição do Supremo Tribunal Federal: a Defensoria não está obrigada a manter convênio com apenas uma instituição. A OAB é muito importante, mas, pontualmente, tem muitas soluções que são dadas por outras instituições.

ConJur — Como são os gastos da Defensoria de São Paulo com o convênio?

Rafael Português — Sessenta por cento do nosso orçamento é gasto com convênio. Estamos falando de um valor entre R$ 450 e R$ 550 milhões. Praticamente tudo é com o convênio com a Ordem. Os outros convênios são gratuitos, em sua maioria, como as faculdades. Para elas é interessante ter uma Defensoria, dar uma formação naquela área. Já os convênios firmados com outras entidades é por atuação em determinada área. Há um cálculo feito pela associação de que se o defensor público fosse pago pelo convênio, ele teria um salário em torno de R$ 100 mil. Cada ação que ele propõe, cada defesa que ele faz, cada audiência que ele atua, são atos pagos pelo convênio. Como o defensor tem a obrigatoriedade de atuação exclusiva na área, então o custo é bem menor.

ConJur – Quanto é o salário inicial de um defensor, hoje em dia?

Rafael Português — R$ 11.500.

ConJur — Seria um aumento bom chegar aos R$ 100 mil.

Rafael Português — Acho que teria uma grande procura em virar defensor, até advogados de grandes escritórios.

ConJur — É difícil atrair pessoal para a Defensoria?

Rafael Português — O concurso é muito disputado, hoje há uma cultura desde os bancos escolares; isso já se torna um mote para os estudantes. O estudante já tem uma formação específica e já se direcionam para a Defensoria Pública. No último concurso nós tivemos uma relação de 85 candidatos por vaga.

ConJur — E se mantém?

Rafael Português — A evasão, nos primeiros anos da Defensoria Pública, era muito grande. Hoje, a gente tem uma evasão de 5%. Quando começou, em 2007 era de 20%.

ConJur — O que a Defensoria tem para atrair defensores, além do salário?

Rafael Português — Na Defensoria tem construção de teses jurídicas e de peças cíveis. Trabalhamos com coisas inovadoras, como inserir posse em inventários, discutir o direito da laje…

ConJur — O que é direito da laje?

Rafael Português — Se um homem tem uma construção e faz uma casa em cima da sua, essa casa faz parte do prédio dele. Só que quando falamos de comunidades pobres, é comum que quem more embaixo não tenha nada a ver com quem mora em cima, mas é preciso decidir de quem é o direito sobre a laje, que é disputada na Justiça muitas vezes. É quem mora na casa da laje? É quem construiu? É o dono do prédio de baixo? Também é interessante o exemplo da posse: se você mora numa invasão, a sua posse daquela invasão é a coisa mais importante que você tem. Se você morre, você tem que ter o direito de passar essa posse para seus herdeiros.

ConJur — Em São Paulo tem se discutido muito os direitos dos ambulantes?

Rafael Português — Foi uma força conjunta da Defensoria que impediu a remoção dos ambulantes. A Defensoria também tem esse papel, de dar luz a demandas que estão no subsolo do Judiciário.

ConJur — Que outras questões estão no subsolo da Justiça?

Rafael Português — A questão do Direito Ambiental, por exemplo, é muito importante para nós, mas temos outra visão dele. Vemos pelos olhos daquelas pessoas que, além não terem acesso às benesses do sistema, acaba causando danos ambientais e sendo criminalizado enquanto busca o direito à moradia. O pobre na periferia de São Paulo vem sendo alvo de alguns instrumentos de criminalização por jogar sujeira no rio. Fora das margens do rio, porém, não há espaço na cidade. O espaço que não é ambiental já está ocupado pela indústria imobiliária. O importante para nós é dissociar a atuação do defensor público do Direito criminal, mas essa ainda é a mais importante. Hoje, cerca de uma a cada 180 pessoas no estado de São Paulo está presa. Na faixa dos 20 ou 30 anos, vira uma a cada 50. Se contarmos apenas negros, baixa para 20. E se contarmos apenas pessoas que ganham até três salários mínimos — que é a faixa de atuação da Defensoria Pública — será um para cada 10 pessoas. Os potenciais usuários da Defensoria estão, sim, presos. É importante discutir política criminal.

ConJur — Com tantas pessoas assim precisando, não seria interessante que advogados também participassem?

Rafael Português — Ele não tem obrigatoriedade, compromisso público enquanto advogado. Isso me obriga a me especializar nessa área, isso me dá um ganho sobre a realidade do carente. Eu não posso ser excluído por ser um defensor na minha atuação. Se eu ficar doente ou se eu tiver férias, outro defensor com as minhas prerrogativas e com as minhas obrigações vai pegar e assumir. Eu tenho uma ouvidoria externa que é um órgão que não é formado por defensores públicos que fiscaliza a atuação do ponto de vista do atendimento ao usuário. Eu tenho um horário de atendimento público. O escritório não tem horário, pode abrir e fechar quando lhe interessar. Há toda uma lógica para você ter uma instituição com as formas e o domínio da Defensoria Pública. Você dá uma racionalidade ao gasto público e dá certa garantia ao cidadão de que aquela é uma instituição perene, que aquele profissional não vai dar preferência a demandas em particular que não do interesse público. E garante que aquele que está lá vai responder administrativamente, não só pela questão do direito em si, mas da questão do atendimento ao usuário.

ConJur — E o que mais diferencia o atendimento em si?

Rafael Português — Em São Paulo trabalhamos com uma instituição chamada Centro de Atendimento Multidisciplinar (CAM). O carente que chega dizendo que quer se divorciar é avaliado pelo defensor que o atende. Quando percebemos que, além do divórcio, há outro conflito psicossocial envolvido, a pessoa é imediatamente encaminhada a esse atendimento no CAM, para que eles possam, junto com o defensor público, estudar o caso. Esse órgão também atua numa conciliação prévia. Já tivemos bastante êxito também em questões de violência doméstica.

ConJur — A busca pela Defensoria em caso de violência doméstica aumentou?

Rafael Português — Sim. Somos o principal órgão que atua em Varas de Família. O Defensor Público já está tarimbado para saber que, quando o assunto é divórcio, pode ter violência, pode ter assédio moral sofrido pelas mulheres, pode ter um complexo de relações para as quais acaba requerendo a atuação do delegado ou do próprio promotor.

ConJur — Os HCs das Defensorias chegam mais aos tribunais superiores e ao Supremo do que os de advogados dativos?

Rafael Português — O advogado dativo, até mesmo aquele muito combativo, não conta com a estrutura que a Defensoria tem. O defensor público pode propor uma sustentação oral aqui em São Paulo e outro defensor do núcleo de Brasília da Defensoria Pública fazer a sustentação por lá. Ele vai fazer o acompanhamento, vai receber a intimação e depois vai mandar para o defensor da base, da ponta. Essa estrutura toda, essa sinergia que há na instituição supera gargalos. E o dativo não tem isso. É quase impossível para os dativos, até para os mais combativos, fazer sustentação oral nos tribunais, pois eles precisam pagar do próprio bolso para ir a Brasília. E os índices de eficiência mostram a importância da instituição.

ConJur — A gente vê que o pró bono não tem decolado. Isso auxiliaria o trabalho da Defensoria?

Rafael Português — Tendo pessoas dispostas, que façam um trabalho sério com o cidadão carente, é claro que isso ajuda bastante.

ConJur — Como é a relação da Defensoria com o Ministério Público?

Rafael Português — Nossa relação com o Ministério Público, especialmente o de São Paulo, é excelente. Na relação profissional, em relação à defesa pública, temos inúmeras ações que são propostas em conjunto da defensoria com o Ministério Público. Também não temos conflitos nessa área.

ConJur — O Ministério Público em São Paulo tem uma estrutura muito maior do que a da Defensoria. Isso não causa problemas?

Rafael Português — É claro que a estrutura que o Ministério Público tem hoje — e que é necessária —, acaba criando uma defasagem na defesa em comparação à acusação. Acho que já caminhamos para corrigir essa distorção.

ConJur — Isso mostra uma maior importância da acusação no país?

Rafael Português — Essas distorções ocorreram naturalmente. Não por conta do MP, mas por conta da nossa estrutura legal penal. É muito mais fácil acusar do que defender, até porque a gente defende quem já tem uma predisposição a ser acusado, que é o cidadão carente. A Defensoria Pública de São Paulo, sozinha, foi responsável por 60% a 70% dos Habeas Corpus do país. Em 2008, foram mais de 5 mil. No Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal, o número de HCs da Defensoria de São Paulo é muito expressivo.

ConJur — O poder de propor Ação Civil Pública é uma prerrogativa do Ministério Público?

Rafael Português — Não, a prerrogativa do MP é a defesa da ordem jurídica, com os instrumentos jurídicos cabíveis no caso. A defesa do carente também deve ocorrer por todos os instrumentos jurídicos disponíveis, como é o caso da Ação Civil Pública. A atuação do MP não é a Ação Civil Pública, a ação do MP é a defesa dos direitos individuais por ele constituídos. Numa ação que envolve o governo contra uma comunidade carente as duas instituições se contrapõem. O MP quer a remoção de uma população carente de uma área ambiental, analisando do ponto de vista da defesa do Direito Ambiental. A Defensoria se contrapõe fazendo a defesa daquela população que está lá, analisando os custos de moradia para a população carente. Os dois vão disputar juridicamente e legitimamente sobre isso. Quando, por exemplo, essa população carente tiver um problema que necessite de uma ação de massa, devemos atuar com a Ação Civil Pública. Houve, inclusive, uma alteração da Lei de Ação Civil Pública que, a nosso ver, permite, inclusive, que a própria Ordem dos Advogados tenha essa atuação. A ação pública não é uma prerrogativa, é um tipo de acesso à justiça, que dependendo da situação a defensoria vai utiliz.

ConJur — Como é a Defensoria em outros estados?

Rafael Português — Em Goiás, por exemplo, existe uma lei que cria a Defensoria Pública, de 2005. Até hoje, porém, não tem defensor no estado. O concurso público está parado. Antigamente tinham outros dois estados que não tinham Defensoria: o Paraná e Santa Catarina. Esses dois estados criaram leis. No Paraná, a primeira parte dos concursos foi feita, está em andamento. A lei é bastante avançada. Santa Catarina criou a sua lei ainda que com alguns problemas.

ConJur — Quais são os problemas com a lei de Santa Catarina?

Rafael Português — O principal é o número reduzido de defensores. Há vaga para somente 20 dos 60 defensores que o estado precisa. O ideal seriam 200. O projeto de lei original que cria a Defensoria Pública de Santa Catarina foi uma iniciativa popular.

ConJur — Como são calculados esses 200?

Rafael Português — O grande parâmetro da Defensoria é o número de promotores em varas de comarca. O MP tem uma atribuição maior na área penal, daí a gente vê que onde tem um promotor deveria ter um defensor.

ConJur — Os outros estados têm essa proporção?

Rafael Português — Não. Aqui em São Paulo, por exemplo, não temos, porque estabelecemos convênios e gastamos muito dinheiro com os convênios, mas isso é um processo político. No Rio de Janeiro, eu acho que é similar. Vemos que o convênio é uma característica quase paulista. No Rio, a Defensoria está em quase todas as comarcas, se não em todas.

ConJur — Mas tem convênios com universidades lá.

Rafael Português — Isso é pontual e suplementar. É convênio com a Uerj e com a PUC. Mas não é um atendimento da população em massa como aqui em São Paulo.

 

Por Marcos de Vasconcellos
Conjur

 


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