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Defensoria precisa definir identidade para não se prender ao passado

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“Tem dois inimigos: o primeiro ameaça-o por trás, desde as origens; o segundo fecha-lhe o caminho para diante. Luta contra ambos. Na realidade, o primeiro apoia-o em sua luta contra o segundo, quer impeli-lo para diante e da mesma maneira o segundo o apoia em sua luta contra o primeiro, empurra-o para trás. Mas isto é somente teórico. Por que além dos adversários também existe ele, e quem conhece suas intenções? Sempre sonha que em um momento de descuido – para isso faz falta uma noite inimaginavelmente escura – possa se safar da linha de combate e ser elevado, pela sua experiência de luta, por cimados combatentes, como árbitro.” (Franz Kafka, “Ele”[1])

O pequeno ensaio de Kafka bem descreve a condição humana no tempo. E, se descreve a condição humana, também aponta para a condição das instituições que o sujeito cria em suas dinâmicas de produção de cultura, em seus processos de organização da sociedade que integra na construção de seu lugar no mundo. Fazendo a ponte entre o acima exposto e o debate que se inicia, pode-se afirmar que a Defensoria Pública encontra-se em um momento crítico de tensionamento entre seu passado e o que pode vir a ser seu futuro, o que exige profunda reflexão a fim de se evitar que alguns empuxos do passado possam comprometer o acesso ao futuro que se abre pela Constituição — especialmente após a Emenda Constitucional 80.

Posto isso, cabe ponderar que a Defensoria é instituição recente, o que, de algum modo, justifica as crises identitárias hoje enfrentadas. Inclusive, em seus primórdios, à falta de modelo referencial sedimentado, a Defensoria balizou-se pelo paradigma da assistência judiciária. Sem dúvidas, tratava-se da referência mais concreta com que se podia contar em 1988 — quando dividia com a Advocacia a Seção III do Capítulo da CF destinado às funções essenciais à justiça.

Vê-se, assim, que, quando da promulgação da CF/88, foi o próprio constituinte quem aproximou topograficamente as funções da Defensoria das atividades da advocacia privada, embora já então orientasse a Instituição para a defesa dos necessitados, na lógica democrática de ampliação do acesso à justiça. Vale dizer: àquela época, a adoção da assistência judiciária como referência era opção acima de tudo lógica, o que, por outro lado, também nos vinculava a uma espécie de advocacia dativa institucionalizada.

Ocorre que a insuficiência desse modelo não demorou a vir à tona. A complexidade das desigualdades que definem o que é o Brasil motivou a Defensoria a ir além de uma advocacia dativa institucionalizada, para inovar na tutela aos vulneráveis.
É do espírito vanguardista e do vigor do movimento emancipatório promovido pelos que se podem definir como primeiros defensores públicos que se extraem, pois, as bases de nossa legislação de regência e da EC 80, que deu a seguinte redação ao artigo 134 da CF:

A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do artigo 5º desta Constituição Federal.

As mudanças não são poucas. Além de alçada à condição de instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, à Defensoria hoje incumbe, fundamentalmente — em abertura a outras funções e objetivos que vão além dos fundamentais[2] —, como expressão e instrumento do regime democrático, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do artigo 5º da CF.

Em síntese: a EC 80/14 vem legitimar e coroar constitucionalmente as evoluções veiculadas pelas LCs 80 e 132, consolidando a dimensão pública em que se insere a Defensoria, que agora inclusive se vê definida em seção distinta daquelas reservadas à Advocacia privada e pública. Compreende-se assim formalizado um marco a partir do qual já não se podem confundir as funções de um defensor com as de um advogado público, tampouco com as atividades próprias à advocacia privada.
A EC 80/14, portanto, veio consolidar a baliza primeira a referenciar nossas dinâmicas de construção identitária, que devem se dar na dimensão pública, de modo que, se sempre pudemos saber que não éramos juízes ou promotores, resta agora claro que também não somos advogados, nem mesmo públicos[3]. Mais que nunca, estamos aptos a situar nosso lugar de fala, o que significa estabelecer uma identidade própria no sistema de justiça face aos nossos outros, marcadamente a Magistratura, o Ministério Público e a própria Advocacia.

Consigne-se, de todo modo, que a diferenciação entre as funções da Defensoria e aquelas próprias à advocacia privada já era notória mesmo antes da EC 80, bastando observar que o vínculo que une o defensor a seu assistido é determinado por normas de Direito Público — indicativas de uma impessoalidade e marcado pela assimetria própria ao Direito Público — e não por um contrato — indicativo de uma relação personalíssima, calcada na escolha e marcada pela simetria própria ao direito privado. Do mesmo modo, considerando os objetivos de uma e de outra, mesmo antes da referida emenda já era possível distinguir as funções da Defensoria daquelas próprias à advocacia pública, ainda que ambas se desenvolvam na dimensão pública.

Certo é que, entre o defensor e seu assistido — que não se trata de cliente ou ente — há uma instância transcendental: o interesse público de se garantir o acesso à justiça aos necessitados, adjetivo que há de ser interpretado segundo os princípios e objetivos regentes de nossa Constituição, ainda que, fundamentalmente (a priori), possa remeter aos economicamente vulneráveis. Noutras palavras, o que legitima a atuação da Defensoria não é, em primeiro lugar, o interesse privado do assistido — ainda que sua tutela jurídica seja o objetivo final da atuação —, mas o interesse público de garantir a todos, indistintamente, amplo acesso à justiça, visando à promoção da cidadania, redução das desigualdades sociais, proteção dos direitos humanos etc.

Identifica-se, pois, a causa primeira — o espírito — que justifica nossa existência e deve animar nossa atuação, que visa à tutela dos interesses de nosso assistido tendo por objetivo maior (transcendente) a efetivação dos princípios e objetivos constitucionais[4]. É dizer: ao atuar em busca da tutela jurídica dos interesses de nossos assistidos, estamos subordinados a um preceito fundante, que é o de garantir amplo acesso à justiça para que se efetivem os princípios e objetivos constitucionais. Trata-se do acolhimento público a interesses privados, no que podemos nos definir como defensores do interesse público de garantir amplo acesso à justiça aos cidadãos vulneráveis que pretendam a tutela jurídica a seus direitos privados – e também públicos.

Para além do plano privado, portanto, o que nos inter-essa, o que nos relaciona e une enquanto defensores públicos[5] situa-se na dimensão pública, que se expressa pelos princípios e objetivos constitucionais.

E é a própria história brasileira, erigida sobre desigualdades, que legitima a previsão constitucional de uma instituição pública voltada à promoção dos direitos humanos, bem como à orientação e defesa jurídica dos necessitados, destacando-se que as desigualdades a que se refere não cabem no bolso, razão pela qual a atuação institucional, ainda que fundamentalmente vinculada a critérios econômicos, a eles não se resume.

Daí porque se trata de uma Instituição essencial à expressão da democracia, que pressupõe cidadãos livres e iguais, o que depende — especialmente no contexto brasileiro — da intervenção do Poder Público no sentido de assegurar efetividade ao direito a ter direitos, síntese da missão constitucional da Defensoria de promover cidadania. Ou seja, cabe à Defensoria o dever maior de servir de meio de acesso à linguagem do poder — que é o Direito — a todos os grupos vulneráveis (necessitados) que historicamente foram postos à sua margem, visando à sua emancipação[6].

Tudo isso depende da garantia ao amplo acesso à Justiça, que ora grafamos com inicial maiúscula a fim de destacar que a ideia que se busca comunicar é abrangente, não se restringindo ao acesso ao Judiciário. Nesse sentido, mais uma vez, destaca-se a dimensão pública em que deve se dar nossa atuação e o compromisso de avançar, por exemplo, na busca por meios de pacificação social alternativos à jurisdição, o que atualmente se apresenta não só como necessidade, mas como dever institucional (artigo 4º, II, da LC 80/94).

Observa-se, portanto, que, partindo de seus princípios fundamentais (artigo 1º) e com vistas a atingir seus objetivos precípuos (artigo 3º) — com destaque para a redução das desigualdades —, a CF e a legislação infra foram pródigas em atribuir funções as mais diversas à Defensoria, que congrega todos os avanços galgados nas chamadas ondas renovatórias de acesso à justiça: garantia de acesso à justiça à população economicamente vulnerável (primeira onda), possibilidade de atuação em tutela a direitos difusos e coletivos (segunda onda) e abertura de meios de pacificação social alternativos à jurisdição, abrangendo a prevenção de litígios (terceira onda)[7].

Eis nosso contexto presente, que se abre em significação e se fortalece em legitimidade com a EC 80, que nos lança a um futuro de concretização de princípios e objetivos constitucionais de primeira grandeza. Mas não são poucas as forças que teimam em nos empurrar para o passado, pressionando-nos a fazer de nossa atuação simples reedição do modelo de advocacia dativa que estava na base do serviço de assistência judiciária que posteriormente se converteu em Defensoria Pública.

É aí que se identificam graves riscos e as causas de nosso atual tensionamento identitário: ou cedemos aos empuxos do passado e, com uma atuação restritiva, nos reduzimos à mera reedição institucionalizada da advocacia dativa, ou assumimos as responsabilidades de que nos incumbe o texto constitucional, exorcizando os fantasmas dos modelos de atuação privada que ainda nos assombram para adentrarmos a dimensão pública em que poderemos concorrer ativamente para a efetivação dos princípios e objetivos de nossa Carta Maior.

Trata-se de escolha que definirá o futuro da Defensoria, sendo evidente que o exercício da advocacia dativa não justifica a mantença, nem requer uma Instituição pública constitucionalmente destacada para esse fim.

Com isso, observa-se que uma atuação que desconsidere as forças que nos lançam para o futuro cedendo aos empuxos do passado pode reduzir-nos à condição de supérfluos, o que, no mínimo, será justificativa pronta para a ainda mais drástica diminuição ou mesmo interrupção dos investimentos necessários à implementação/expansão da Defensoria. E a força do deus Mercado concorre ativamente para isso, diante do excedente de profissionais por ele não absorvidos… Aliás, as atenções nesse sentido hão de ser redobradas, uma vez que tão somente o fato de atuar na tutela dos historicamente vulneráveis já coloca a Instituição na contramão dos movimentos de manutenção do satus quo, ou seja, em situação de vulnerabilidade.

Nesse contexto, para que se evitem retrocessos, é de se conclamar os agentes que presentam a Defensoria a uma atuação capaz de revolucionar de fato a identidade institucional, firmes no artigo 134 da CF. Refere-se a um movimento que supere o espírito burocrático que acriticamente tende a imperar, a partir da conscientização da população em geral e dos próprios defensores quanto à importância da Instituição na construção de um país de fato democrático.

São, pois, temas passados e presentes cujo debate se faz necessário para preparar o que esperamos seja a Defensoria Pública do futuro.

[1] In KAFKA, Franz. A muralha da China. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2000.

[2] O advérbio fundamentalmente auxilia na interpretação que se deve dar à parte final do art. 134 da CF, no bojo do próprio dispositivo e no contexto constitucional em que se insere. Indica que a referência primeira à assistência pela Defensoria Pública está atrelada à vulnerabilidade econômica – até mesmo porque está na base das desigualdades mais marcantes em nossa realidade. Porém, uma vez que as desigualdades que compõem a realidade brasileira não se restringem às econômicas – como reconhece a própria Constituição, consoante se extrai da leitura de seus arts. 1º, 3º, 5, 6º, 227 e 230, dentre outros, certo é que o conceito de “necessitado” que se extrai do art. 134 da CF não se limita à constatação de hipossuficiência econômica. Aliás, tal interpretação, s.m.j,, contradiria o próprio art. 134, cujo texto deve ser interpretado integral e sistemicamente – da parte ao todo, do todo à parte, para resumir. Mas atenção: o afirmado não traz em seu verso pretensões universalizantes de atendimento pela Instituição. Longe disso. Entretanto, reconhecer que os espaços de atuação devem ser preservados não significa que o conceito de necessitado se restrinja à hipossuficiência econômica. Direito não é ciência exata e as vulnerabilidades são dinâmicas – assim como as desigualdades que a CF objetiva reduzir –, devendo ser analisadas no caso a caso.

[3] O que, a nosso sentir, é de suma importância, uma vez que devemos ter referenciais próprios de atuação, abandonando a relação especular (de espelho) – e não diferencial (de alteridade) – que ainda mantemos com o Ministério Público, a Advocacia e a Magistratura. Embora a eles semelhantes, especialmente sob alguns aspectos formais, a Defensoria Pública diferencia-se em essência desses seus outros, com os quais não pode se confundir se almeja uma identidade própria. Aliás, são justamente essas diferenças essenciais que justificam sua inclusão no sistema de justiça, cujo equilíbrio decorre da distinção das funções atribuídas e desempenhadas por cada uma de suas instituições e agentes, em busca da concretização dos objetivos maiores de nossa Constituição.

[4] Observe-se, quanto ao exposto, a marcada diferença em relação à atuação do advogado particular, que tem em primeiro plano a defesa dos interesses do cliente, ainda que exerça serviço de relevância pública e com função social – que se reconhece à atividade advocatícia (art. 2º, §1º, da Lei 8.906/94 – Estatuto da OAB).

[5] ARENDT, Hannah. A condição humana. 10ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 228.

[6]  COSTA, Domingos Barroso da Costa; GODOY, Arion Escorsin de Godoy. Educação em Direitos e Defensoria Pública: cidadania, democracia e atuação nos processos de transformação política, social e subjetiva. Curitiba: Juruá, 2014.

[7] CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988.


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